Daki Semiárido Vivo
Protagonismo feminino na convivência com o semiárido brasileiro é exemplo para o mundo
Dona Nitinha, moradora do Assentamento Esperança, no município Governador Dix-Sept Rosado, possui em seu quintal mais de 40 espécies frutíferas, plantas medicinais, horta, criação de galinhas, forragem, sistema de tratamento de águas cinzas, produção de biofertilizante e uma cisterna que abastece sua família. Com um grupo de companheiras, ela também faz cerca com uma máquina própria. Ao entrar nesta pequena área diversificada e produtiva, a sensação que tomou a todas e todos foi de entrar num sonho.
O quintal de Dona Nitinha foi visitado durante o Intercâmbio internacional entre Semiáridos latino-americanos realizado pelo projeto DAKI – Semiárido Vivo. A atividade aconteceu no âmbito do 2º Programa de Formação em Agricultura Resiliente ao Clima, que em sua primeira etapa envolveu mais 950 agricultores/as e técnicos/as de três regiões semiáridas.
No Semiárido brasileiro, o intercâmbio acontece também na Bahia e no Ceará. E anteriormente teve uma edição no Chaco argentino e outra no Corredor Seco Centroamericano. O Rio Grande do Norte recebeu 31 participantes do próprio estado, da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e da Argentina.
De agricultora para agricultora
A ideia dos intercâmbios entre agricultoras e agricultores é promover a visitação de experiências bem sucedidas, inspiradoras e protagonizadas por outros agricultores/as, explica Antônio Barbosa, coordenador do projeto DAKI – Semiárido Vivo.
As visitas no Rio Grande do Norte aconteceram no Território do Sertão do Apodi, composto por 17 municípios, e envolveram iniciativas de agricultura familiar, agroecologia, produção e certificação orgânica, criação animal, beneficiamento de produtos, comercialização, organização social e tratamento e reúso de água.
“A gente só era do quintal para a porta da sala. Quando o CF8 [Centro Feminista 8 de março, ONG que atua na região] começou a trabalhar aqui, a gente passou a saber que podia sair lá para fora conquistar as coisas”, contou Ivonilda de Sousa Lima, conhecida como Nova.
Ela, juntamente a outras famílias, recebeu os intercambistas em sua comunidade para conhecerem os sistemas de reúso de água cinzas implantados na Agrovila Palmares, município de Apodi. As mulheres da Agrovila Palmares se organizam no Grupo de Mulheres Juntas Venceremos e participam ativamente na luta pela defesa do território agroecológico do Apodi.
Entre 2011 e 2012, juntamente com a Comissão de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi (STTR Apodi), da qual Nova já foi coordenadora, realizaram uma grande mobilização para enfrentar as empresas do agro e hidronegócio, cujo projeto de implantação demandava desapropriação de cerca de 13 mil hectares de pequenas propriedades da agricultura familiar no território.
O projeto ficou conhecido pela população local como “O projeto da morte” e a mobilização ganhou solidariedade de outras mulheres e do movimento da Marcha Mundial das Mulheres sob o nome “Somos Todas Apodi”.
Sara Francisca Aparicio, indígena da etnia Wichi no Chaco Argentino, ao tomar conhecimento destas experiências protagonizadas por mulheres, disse que pôde sentir a força das mulheres no sertão. “O papel da mulher nas comunidades é muito importante, estão à frente dos projetos, têm as melhores decisões e iniciativas”, comentou.
Reúso de águas e saneamento rural no semiárido
Alexandra Farias, que prefere ser chamada de Sandra, é agricultora do Assentamento São José, no município de Caraúbas. Ela combina diferentes tecnologias e atividades produtivas dentro de sua propriedade. Sandra possui uma horta, trabalha fazendo pães e quitutes na cozinha comunitária, que mantémjunto com outras companheiras, e construiu seu próprio sistema de reúso de águas cinzas.
Ao receber os intercambistas em sua comunidade, contou que houve muita resistência dos maridos para que as mulheres do assentamento São José pudessem realizar o processo de formação em cultivo de horas e processamento de alimentos.
Com apoio da Diaconia, ONG promotora da formação, houve um longo processo de convencimento dos homens. Risoneide Lima, técnica da organização, conta que a organização passou a exigir que a assessoria técnica às famílias incluísse sempre uma mulher como técnica, para garantir que as agricultoras fizessem parte das discussões. “A gente precisa desconstruir a ideia de que o trabalho da mulher é ajuda. A mulher não ajuda, ela trabalha”, defendeu.
Sandra hoje se sente empoderada junto com outras mulheres. Junto ao CF8, ela realizou uma formação para ser construtora de uma tecnologia de reúso de águas cinzas e fez seu próprio sistema em seu quintal. A água é aproveitada para tratar plantas forrageiras em seu quintal e outras plantas.
A apropriação das agricultoras e dos agricultores de suas próprias tecnologias de captação e reúso de água é um princípio que norteia o fazer a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), executora do Projeto DAKI – Semiárido Vivo no Brasil.
Ao longo dos anos, as mulheres têm sido formadas para serem cisterneiras, não sem enfrentar muitos desafios. No quintal de Sandra, Maria Angela dos Santos, agricultora de Alagoas, que passou por esta experiência, relembrou que muitos homens não queriam que elas fossem as construtoras das cisternas em “seus” quintais. “Quando a gente chegava lá eles já estavam com a massa toda feita errada. Eu: não, quem vai bater placa aqui somos nós. Ele: aqui mulher não levanta cisterna”.
O cooperativismo no Rio Grande do Norte
O intercâmbio no Rio Grande do Norte também foi palco de experiências exitosas de cooperativismo. A Cooperativa Potiguar de Apicultura e Desenvolvimento Rural Sustentável (COOPAPI), sediada no município de Apodi, foi fundada em 2014 e envolve 399 agricultores/as familiares de todos os municípios do Rio Grande do Norte.
A cooperativa tem parceria com 16 casas de mel, 22 associações, possui outras 13 cooperativas ligadas a ainda é parte de uma central de cooperativas nacional. A iniciativa, que começou com o beneficiamento de mel, aposta na diversificação da produção como estratégia de sustentabilidade. Além de beneficiar o mel e a castanha, a COOPAPI se especializou no artesanato a partir do algodão agroecológico e possui uma unidade de beneficiamento de frutas.
Um dos pontos fortes da cooperativa é o acesso a mercados sem intermediação. Isso acontece através do acesso às políticas públicas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) e via venda direta aos consumidores através das feiras de agricultura familiar da bodega que possui na cidade de Apodi.
Segundo Reginaldo Câmara da Costa, presidente da entidade e tecnólogo em cooperativismo, em 2022, a COOPAPI movimentou cerca de 3 milhões de reais em vendas privadas e públicas.
Os participantes visitaram também a bodega da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, sediada em Mossoró. A Rede é uma experiência bastante conhecida, inclusive fora do Rio Grande do Norte. Iniciou sua organização em 2003 e atualmente está presente em 17 municípios potiguares.
Tem como missão produzir e comercializar produtos de base agroecológica, e fomentar a articulação em rede amparada pelos eixos agroecologia, feminismo e da economia solidária. Um dos grandes feitos da Rede Xique Xique é ter organizado um sistema de certificação participativa, processo fundamental para que as/os agricultoras/es familiares tenham acesso à mercados institucionais.
Ambas as iniciativas impressionaram muito os participantes. “Para mim foi uma experiência muito forte a questão das cooperativas”, avaliou Maria Elisabete Menezes, técnica do Instituto Agronômico de Pernambuco, ao final do intercâmbio.
Na mesma linha, Valterlandio Cardoso, agrônomo do Patac, na Paraíba, se sentiu inspirado. “Percebemos uma rede muito forte de escoamento de mercadoria. Lá na Paraíba, as cooperativas que existem são particulares. Existem poucas cooperativas do movimento dos agricultores. Existe uma resistência das famílias que estão organizadas nos seus grupos e associações, mas precisamos encarar essa realidade”.