Daki Semiárido Vivo
Intercâmbio no sertão da Bahia revela potencialidades, avanços e também atraso no Semiárido brasileiro
A troca de experiências enriqueceu a bagagem de quem veio de outros estados do Semiárido brasileiro e de El Salvador. Comunidades acolheram visitantes, reafirmando a alegria e hospitalidade do povo caatingueiro
A imensidão de terras com cultivo de cana de açúcar vistas pela janela do ônibus na área rural de Juazeiro (BA), chamou atenção de Jose Eduardo Rodriguez Siguenza, representante do Corredor Seco da América Latina no Intercâmbio do 2º Programa de Formação em Agricultura Resiliente ao Clima, do Projeto Daki Semiárido Vivo, coordenado pela ASA e pela Plataforma Semiáridos, e executado no Semiárido brasileiro, no Corredor Seco Centroamericano e Grande Chaco Americano.
O latifúndio verde, cuja existência se deve à vitalidade do Rio São Francisco, é um dos exemplos das contradições no Semiárido brasileiro. Enquanto mais de 30 milhões de pessoas vivem em situação de fome no Brasil, mais de 30 mil hectares de terras são usadas para cultivar cana em Juazeiro, área que poderia abrigar uma média de cinco mil lotes de seis hectares destinados à agricultura familiar.
Na contramão destes empreendimentos do agronegócio – subsidiados pelo Estado desde a época em que se pensava que havia como “combater a seca” – estão as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto, destino das cerca de 40 pessoas que vivenciaram o intercâmbio entre os dias 21 e 25 de agosto.
Os municípios de Canudos, Uauá e Sento Sé, além de Juazeiro, receberam o público que conheceu experiências relacionadas à luta pela terra e território, recaatingamento, organização comunitária, captação e armazenamento da água de chuva, saneamento rural, beneficiamento e comercialização da produção agropecuária, horta urbana e práticas de saúde integral. O recorte de juventude e gênero permeou todas as vivências, possibilitando refletir sobre temas como sucessão rural e autonomia financeira das mulheres.
Experiências
Em Bom Jardim, no município de Canudos, a comunidade recebeu um dos grupos com fartura de comida, apresentações culturais e até lembrancinhas. Esta forma de acolhida confirma o sentimento de fraternidade, uma das características do modo de vida da comunidade, reconhecida como comunidade tradicional de Fundo de Pasto. Para além disso, o relato da luta pela garantia da terra e território e a preservação da Caatinga foi o que fez as/os visitantes esquecerem o cansaço dos mais de 250 km rodados entre Juazeiro e Bom Jardim e o transtorno com veículo quebrado devido às péssimas condições da estrada vicinal.
Para uma das lideranças da comunidade, Laeú José dos Santos, a troca de informações nesses momentos ajuda a própria comunidade a refletir sobre sua história. “Com as perguntas que as pessoas que vem no intercâmbio fazem a gente começa ter outra visão de como agir dentro da comunidade, de como aprender mais sobre a comunidade, incentivar a juventude a se engajar mais”, relata o agricultor.
Quem foi para Uauá teve a oportunidade de conhecer o Banco de Sementes e área de agrocaatinga na comunidade de Caldeirão dos Lalaus e em seguida visitar a Fábrica da Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc) na sede do município. Em Canudos, o grupo visitou o Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC) para conhecer a história do massacre ocorrido em 1897, episódio que ficou conhecido como Guerra de Canudos, porém ainda pouco estudado na história convencional.
O saneamento foi o elemento central das visitas na área rural de Juazeiro. As/os participantes também se dividiram para entender a proposta das cinco linhas de luta pela água trabalhada pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) na comunidade Fundo de Pasto de Cachoeirinha, distrito de Massaroca.
No vizinho distrito de Abóbora, o reuso de águas oriundas das atividades domésticas e higiene das pessoas foi o ponto central da visita a duas famílias da comunidade de Caiçara. A anfitriã Maria Neves, que também esteve participando de toda a programação do intercâmbio, contou que a comunidade reconhece mudanças significativas a partir da chegada de projetos da ASA cinco anos atrás, a exemplo do P1+2 (programa brasileiro de estocagem de água nos semiáridos). Ela frisa ainda o quanto a assessoria técnica é indispensável para a comunidade.
A necessidade de pautar entre o grupo e para sociedade em geral que o meio urbano também é Semiárido, levou o público do intercâmbio à Horta Comunitária Povo Unido, que há 36 anos existe no Bairro João Paulo II. A iniciativa envolve hoje 60 famílias, um total de 112 sócios/as que produzem uma diversidade de alimentos, os quais são comercializados com certificação orgânica. O horticultor Davi da Costa Silva diz que se fala muito sobre a renda, mas “na verdade é vender saúde para comunidade, isso é muito importante”. Ele conta que, além das diversas outras formas de comercialização, a associação participa da feira orgânica semanal existente no município e que a experiência tem sido bastante visitada e também estudada.
No mesmo bairro da periferia de Juazeiro, o Centro de Terapias Naturais Gianni Bandi encheu os olhos de quem tem buscado alternativas de autocuidado e saúde integral. Para quem ainda desconhece as Práticas Integrativas e Complementares de Saúde (PICS) foi um momento de despertar a curiosidade a partir da visita ao espaço, que existe há 24 anos realizando projetos e obras sociais. O Cetesb, como é conhecido, é uma iniciativa que surgiu a partir da ação da igreja católica por meio da Congregação das Oblatas de São Luiz Gonzaga, as Irmãs Luizinhas.
A última visita se deu na comunidade de Fartura, no município de Sento Sé, um trajeto que exigiu do grupo oito horas na estrada. A Rede Mulher Sertão do São Francisco junto com a associação comunitária local acolheu as/os participantes. Fartura foi uma das comunidades pioneiras na experiência de recaatingamento em curso na região desde 2009. Além da preservação da Caatinga com cercamento de áreas, ações como barramentos de pedra nos riachos, quintais produtivos, agrocaatinga e beneficiamento da produção despertaram a curiosidade dos/das intercambistas.
Bagagem
Durante avaliação, muitos elementos foram destacados, a exemplo da força da organização comunitária das comunidades tradicionais Fundo de Pasto, a resistência da cultura popular, a importância das tecnologias junto com a assessoria técnica qualificada e comprometida com a proposta de Convivência com o Semiárido.
A agricultora e ativista Lilian Portillo, integrante da Red de Mujeres del Valle de Jiboa, em El Salvador, disse que retorna a seu país muito contente com a quantidade de conhecimento, o que vai fortalecer um trabalho semelhante já desenvolvido com agricultoras em seu município. Chamou atenção dela a dificuldade de acesso a água nas comunidades, uma realidade que ainda não é considerada um problema em El Salvador, mas que pode acontecer em breve devido às mudanças climáticas que tem afetado todo o planeta, por isso, para ela, devem se inspirar para implementar formas de captar a água da chuva.
Para as/os participantes, ficou também evidente em todos os municípios, a necessidade de ampliação das políticas públicas que garantam mais qualidade de vida às famílias, possibilitando acesso a direitos básicos como água, terra e mobilidade. Outro aspecto negativo que representa um atraso e impacta o Bem Viver foram as ameaças promovidas pelos grandes empreendimentos que chegam junto com as empresas de mineração e de geração de energia renováveis, além do impacto histórico da irrigação no Vale do São Francisco.
Contudo, as/os participantes disseram levar também a alegria, a viabilidade da agroecologia e o exemplo das entidades de apoio na construção de uma realidade que aos poucos confirma que no Semiárido falta apenas justiça social e sobram condições de conviver bem o clima e demais características da região.
Segundo Júlia Rosas, coordenadora pedagógica do Daki Semiárido Vivo, a maior parte das experiências visitadas já haviam sido sistematizadas pelo projeto e refletem bem experiências de agricultura resiliente ao clima. “A gente conseguiu ver uma variedade de experiências protagonizadas pelas comunidades, protagonizadas pelas famílias e isso contribuiu muito para fortalecer essa rede”. Ela chama atenção ainda para a proposta dos intercâmbios, que são momentos de troca e de formação de multiplicadores/as, uma vez que, mesmo dada as especificidades de cada território, uma iniciativa inspira as outras. Nesse sentido, a troca entre agricultores/as e técnicos/as do Semiárido brasileiro com agricultores/as e técnicos de outra região semiárida da América latina para ela é fundamental.
O Intercâmbio foi uma realização do Daki Semiárido Vivo, com apoio local do Irpaa, Serviço de Assessoria a Organizações Populares (Sasop), Articulação Regional Fundo de Pasto, Sertão Agroecológico da Univasf. Estas instituições fizeram a abertura da atividade e deram todo suporte para que o intercâmbio acontecesse.
Lilian Portillo destacou ainda que saiu animada por perceber que existem diferentes lutas sociais mas todas são por melhores condições de vida e “esto significa que no estamos solas, no estamos solas en nuestras luchas, estamos acompañadas, hay otras mujeres, otros hombres que están luchando… esto es importante porque en la unión está la fuerza”, resumiu, confirmando que o intercâmbio cumpriu seu propósito.